Finalmente chegou o dia. E foi do jeito que planejamos: com serenidade, recursos próprios, com propósito. O percurso não foi fácil. Ser pais de nativos digitais, não sendo um, é um enorme desafio. Mas cruzamos a primeira linha.
Você pode me julgar: “que besteira, é só um celular!” Ou: “que mãe careta, mulher esquisita!” Eu sei, sou mesmo e não sou à toa. Conheço bem meu coração e sei quão perverso é. Não gerei santos, mas pecadores “à minha imagem e semelhança”. Antes de colocar um recurso poderoso nas mãos de seres com cérebros que buscam a recompensa a todo custo, sabia que precisava treinar aquela parte do córtex pré-frontal indispensável ao autocontrole, que espera pela recompensa adiada, que resiste à tentação.Foram muitos "desertos da tentação", muitas batalhas — alguns fracassos, outras vitórias. Resistir à tentação é uma prova de maturidade e um atestado para a vida adulta com propósito.
LetÃcia completou 18 anos e comprou seu primeiro celular com dinheiro do seu salário, como fruto do seu trabalho. Aos 9, inspirada nos amigos, desejava ter o seu. Não faltaram patrocinadores, aqueles que se dispuseram a pagar por um iPhone novinho. Foi luta. Graças a Deus, vencemos essa. Aos 15, novamente ressurgiu o desejo, mas foi tênue. Não insistiu, não implorou. Conversamos e houve entendimento pacÃfico.
Como mãe, observava seus comportamentos imaturos, via vulnerabilidade no seu desenvolvimento. Na adolescência, os desafios tornaram-se maiores e mais complexos. apresentaram-se na forma de insegurança social, necessidade de conformar-se com os pares e atração fácil por qualquer coisa que oferecesse validação social. Antigamente, o perigo estava no cigarro, álcool ou casas de jogos. Hoje, essa necessidade pode ser suprida num toque, acessando as redes sociais, vÃdeos, jogos on-line. E eu precisava fortalecer minha menina antes de enviá-la ao deserto deste mundo.
Ela precisava crescer longe das selfies, das câmeras frontais, do face ou Instagram. Ela precisava brincar, ler, escrever, conversar olho no olho, curtir os avós, amigos, irmãos de verdade, na igreja ou na comunidade, viver corporalmente seus relacionamentos. Enfrentar Golias exige preparo fÃsico, a superação do medo começa nas montanhas, cuidando das ovelhas do papai. Os desafios da convivência social são reais e não podem ser substituÃdos pelas telas.
Eu sei, dá trabalho. Deixar tudo para sentar no chão, juntar legos, fazer atividades em famÃlia, conversar, chorar, rir. Essas atividades exigem corpo, interação com trocas, comunicação e sempre tem seus custos de entrada e saÃda — a alegria da comunhão e os desapontamentos dos conflitos inevitáveis. E assim crescemos.
Celular, esse tão pequeno objeto, “descorporifica” tudo. Basta a linguagem escrita, ou uma imagem. Não há trocas, não há comunicação um a um. E não tem custo pessoal de entrada e saÃda. Se ofendeu, bloqueia! Se não gostou, sai do grupo! Simples assim. A vida é descartável.
Eu precisava criar minha menina como Davi, nas montanhas, e deixei que ela cuidasse das ovelhas. Lemos livros, assistimos juntas a documentários, exploramos o assunto. Uma das metas era:”você terá seu celular quando for capaz de pagar por ele”. Essa não foi uma regra caprichosa, de pais exigentes. Nós trabalhamos juntos para que essa e outras conquistas fossem adquiridas com esforço próprio. Pela graça de Deus, LetÃcia começou a trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro. E sua primeira aquisição não foi um smartphone, mas equipamentos que otimizaram seu trabalho. Ela não parecia mais se interessar por este aparelho até que a vida adulta impôs sua presença.
Antes, mais uma conversa, mais leitura e oração, e, então, as regras da casa: use com propósito, seja sábia, nada de fofocas, faça pausas, quarto não é lugar de celular, dê um dia de descanso (sem celular), produza conteúdo relevante, seja positiva, alcance sua geração. Tudo isso envolvido no ambiente de relacionamento real, de prestação de contas, pois devemos uns aos outros. Somos mordomos uns dos outros. E nunca, nunca ignore o mal no seu próprio coração.
Quero aproveitar este momento histórico e conclamar meus leitores e ouvintes a buscar uma vida mais saudável para nossos filhos nesta era digital. Pais, não comprem smartphones para seus filhos; deixem que seja uma conquista. Vamos juntos lutar pela saúde mental, fÃsica e espiritual dos nossos filhos. Vamos juntos! Tudo fica mais fácil com unidade de propósito. Nossos filhos precisam de nós, do nosso olhar, do som da risada, da voz que acalma e repreende, do calor do abraço, da experiência compartilhada. Voltemos aos rituais coletivos: as comemorações que celebram a vida e não o dinheiro. Celebremos o novo nascimento com festa espiritual, a confissão pública com a famÃlia reunida, o batismo, a ceia, o casamento com canções coletivas e conversas à mesa. Aprenda a tocar um instrumento, desligue o som, experimente o poder que o acústico oferece. Usemos nossos músculos, estejamos presentes, sorria de verdade, sem emojis.
Eu não sou nativa digital, mas faço parte de uma geração que abriu mão da famÃlia por uma carreira, viagens, riquezas e eu aprendi a resistir o mal da minha geração: casei nova, tive filhos, suspendi a formação acadêmica, minha carteira de trabalho está em branco. Enquanto embalava bebês, meu marido trabalhava. Nessa jornada, entendi que criar filhos é como cuidar de um jardim e, a certa altura, deixei a cidade pelo campo. Dá trabalho cuidar de jardins. Dependemos do bom tempo, da boa terra, da poda, da rega, mas, sabe, as plantas crescem de maneira imprevisÃvel e com encantos milagrosos.
LetÃcia é minha planta que cresceu. Deus a fez crescer, apesar de mim. As ervas daninhas das telas tentaram sufocar, mas, graças a Deus, eu a vejo criar raÃzes na nossa comunidade local. Eu não me arrependo das promessas que fiz sobre não dar celular para ela. Deus foi fiel em cada etapa do processo. Eu amo a vida que Ele me deu e o caminho que Ele me conduz. As dificuldades, ah, elas foram a resistência necessária para me fortalecer e eu me alegro por ter que passar por várias provações. Lutar contra a correnteza das telas produziu paciência e fortaleceu minha fé. Eu estou pronta para continuar na luta pelos meus outros filhos e pela próxima geração. As expectativas não são de um futuro calmo, mas estou determinada cultivar a vida de outras crianças para que floresçam nesta geração.