O Dever e a Criança - lições da minha Infância

17:31:00



Hoje eu lembrava do tempo em que eu era criança. Lembrava de como minha mãe nos treinou (a mim e às minhas cinco irmãs) para a vida. Não tínhamos luxos, roupas de marca, escolas caras. 

Éramos oito, formando uma família. Minha mãe não tinha tempo para gastar com futilidades. Tudo era muito corrido, da hora do café à hora de dormir, de noite. Ela, muito sábia, deixava as crianças pré-escolares gastar o tempo à toa. Subíamos em árvores, inventávamos histórias, éramos crianças. 

À medida que crescíamos, assumíamos responsabilidades. Cada uma cuidava de um dever: lavar os pratos, arrumar a casa, lavar roupas. E assim ajudávamos esta nobre mulher na sua labuta diária. Crescia mais um pouquinho, e já íamos para as filas dos bancos pagar as contas de casa. No começo, ficávamos na fila guardando o lugar enquanto ela fazia a feira. Depois que aprendíamos a contar dinheiro, pagávamos sozinhas as contas de luz, água, telefone. Crescia mais um pouco e já podia ir sozinha para o supermercado comprar o pão e o leite. Às vezes, percorria um longo caminho cheia de sacolas pesadas, torcendo para avistar minha velha casa.


Cresci mais um pouco e casei. Tive que lidar com minhas próprias contas, minhas feiras, meus deveres diários. Não foi um fardo pesado demais. Aperfeiçoei minhas habilidades e hoje estou com três crianças para treiná-las para a vida. Às vezes, fico com pena de impor uma tarefa pesada demais para meus filhos. Afinal, eles são pequenos. No entanto, preciso preparar-me para amanhã. 

Diferente da minha mãe, cresci ouvindo alguns experts em educação afirmarem que lugar de criança é ou na escola, ou no parque, ou jogando (esse último me dá arrepios!) independente da idade. Calcule o prejuízo se levarmos em conta que a infância de hoje, na prática, se estende até os 14 anos ou mais! "Criança não trabalha, criança dá trabalho", diz os atuais poetas de músicas infantis. 
A cultura brasileira subtendida ou declarada corrobora essa premissa. As crianças ao meu lado mal sabem o que é dever, a não ser o dever escolar (e olhe lá!). Diante disso tudo, tenho um enorme desafio.

E então uso um recurso que nunca me falha quando quero "provar" uma verdade. Tento relembrar os deveres a mim impostos, os sentimentos que tinha enquanto crescia, e como tudo isso modelou meu caráter. Interessante que o que passou na peneira dos anos não foram as queixas, não foi o cansaço, nem mesmo o tempo que deixei de brincar ou estudar para fazer o serviço. Depois de algum tempo eu consigo discernir com mais precisão  o que me fazia ser responsável nas tarefas de casa. A sabedoria da minha mãe em colocar suavemente cargas mais pesadas à medida em que crescia, tornou quase que imperceptível os esforços da virtude, e fez-nos sentir parte integrante de uma família, cuja responsabilidade de amar, cuidar e prover era função de todos. E então, ansiávamos por aquele momento em que nos tornaríamos mais atuantes, nos sentiríamos mais completos, sendo pessoas capazes de contribuir no ciclo de amor que envolve a todos nós, no seio da família.

Cumprir os deveres não era um fardo, mas uma honra, ou melhor, uma promoção. Era sair de um estado de impotência e incapacidade, para um estado de plena capacidade de atuação e verdadeira liberdade. E assim  crescemos. E hoje me tornei "dona" da própria vida. Nenhum trauma, nenhum tempo perdido, apenas um forte sentimento de gratidão e de admiração que cresce e faz da minha mãe um gigante que às vezes me assombra... Não sei se serei forte o suficiente para vencer as amarras de um tempo vazio que me cerca. Sinto-me muitas vezes esmagada por uma cultura que pouco ou nada conhece sobre o que é família, sobre o que é o amor. Que baseia as relações somente no que pode "ganhar", e nunca no que pode dar.

É nesse momento em que me ajoelho e  oro. Eu peço a Deus que me faça conduzir o fio da vida tão sabiamente como minha mãe. Que eu não me deixe vencer pelos discursos do presente, nem por uma suposta felicidade que nega o bem aos outros. Peço a Deus que me faça enxergar não uma criança assumindo responsabilidades, mas uma mulher ou um homem entregando-se pelos seus familiares. A criança que hoje está em minhas mãos era eu no passado. Ela vai crescer e agradecer as escolhas que fiz por ela quando ainda era pequena demais para entender o que era o amor na prática. E que eu possa, acima de tudo, me tornar cada dia mais aquele gigante diante dos seus olhinhos incertos, mostrando o caminho da verdade antiga que fez de muitas crianças, homens e mulheres de verdade.

A vida continua e eu não posso quebrar o fio dos meus antepassados.

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Adna S Barbosa

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